Entrevista à revista Carta da Indústria
Sucesso no cinema, o filme “Vingadores: Ultimato” faz uma analogia clara ao ambiente corporativo. Aliás, tudo o que fala de super-heróis tem relação com o mundo empresarial, segundo a psicóloga Bela Fernandes, especialista em liderança e gestão de pessoas e professora convidada da Firjan IEL e da Fundação Dom Cabral. Mas se sempre foi assim, o que o filme traz de novo? Os super-heróis foram derrotados e, para virar o jogo, precisam trabalhar coletivamente. A mensagem é que trabalhar sozinho em busca de resultado individual ou achar que vai acertar sempre levam à “morte certa”, diz Bela, que também é consultora da Aylmer Desenvolvimento Humano.
CI: O que o filme “Vingadores: Ultimato” ensina aos executivos?
Bela Fernandes: Tudo que fala de super-heróis é análogo ao ambiente corporativo, que busca expressar alta performance, superação, talento. Assim como o Thor tem o martelo como elemento de força, cada executivo possui um “martelo” que representa sua força principal. Curioso ver no filme que, conforme os super-heróis vão evoluindo no campo psicológico, eles passam a usar os elementos uns dos outros. Isso antes era impensável e, comparado ao ambiente executivo, é muito pertinente e contemporâneo. Nos 21 filmes anteriores, os vingadores trabalharam bem, mas sem planejamento e alinhamento coletivo. Fosse quem fosse para a batalha, ganhava porque as qualidades diversas e dispersas eram tantas que dava para vencer.
CI: O que mudou?
Bela Fernandes: O inimigo ficou mais complexo, estudou mais e foi criando uma tensão psicológica entre os super-heróis, o que é a cara do século 21. A série Game of Thrones é muito próxima dessa realidade também, com sete reinos brigando por um trono único até a hora em que o inverno se aproxima e eles entendem ter um inimigo comum, que não lhes dá chance de trabalharem isoladamente. Repare que a arte sempre representa a sociedade contemporânea. A arte vem apresentando para a gente uma conversa subjacente de que trabalhar sozinho em busca de resultado individual é morte certa. Não funciona mais trabalhar cada um por si, com seu próprio talento e contabilizar o resultado no final do ano ou a cada seis meses, como costumam ser as avaliações de desempenho. Tem que se fazer a cada encontro, perguntando ao outro como foi a reunião de ontem.
CI: Como o fracasso pode ser visto hoje?
Bela Fernandes: Um executivo tem um mindset de conquista. Ele chegou ao trono de ferro competindo; e aí como vai lidar com fragilidade e vulnerabilidade? Difícil para ele e para a equipe, porque o modelo mental, o mindset da organização, é de conquista. Ninguém fala em vulnerabilidade; é um processo expositivo muito doloroso. Porém, está morto o mindset de que é preciso acertar sempre. Isso foi nos séculos 19 e 20. Com a Revolução Industrial, construímos a economia mundial pautada em resultado oriundo de alta performance. Não seríamos o mesmo planeta sem esse modelo. Mas a quarta revolução, e daqui a pouco estaremos na quinta, não tem nada a ver com esse modelo. Por isso, o filme “Vingadores: Ultimato” chocou: porque trouxe uma questão que precisa estar dentro das organizações, que é lidar com a fragilidade, com o inimigo que sabe mais sobre você do que você mesmo.
CI: Como você classificaria os erros mais comuns atualmente nas organizações?
Bela Fernandes: Muitas vezes, conversando com executivos, noto que as organizações não sabem o valor humano que possuem, as pessoas não sabem de seus pares. Um equívoco dos heróis é trabalhar com uma narrativa pessoal e não com narrativa global. Então, ainda que não tenha nada a ver com a minha expertise – por exemplo, eu sou de logística e você do jurídico –, eu preciso saber qual foi a sua conquista no seu setor, e vice-versa. Essa é a espinha dorsal do filme “Vingadores”: aprender a ser um herói que se importa com o par ao lado nos mínimos detalhes e que age num ambiente de confiança tamanha que não há problema se eu, hoje, usar o martelo do Thor e o Capitão América me emprestar o seu escudo colorido, porque eu sei usar, pois a gente combinou antes. A excelência de uma organização está em quando alguém consegue explicar o que o colega do lado faz, sabe “vender” a empresa. Agora, quando isso não nos interessa, aí somos heróis de calça frouxa. Não vai ganhar, vamos ter que viver um luto atrás do outro. E vive-se assim.Com isso, nas escolas de negócios, as relações laterais ou a lateralidade positiva são uma nova fronteira de oportunidade.
CI: Existem dicas para o executivo saber lidar com tantas mudanças, tendo em vista o atual momento de disrupção digital?
Bela Fernandes: Tínhamos um algoritmo para o século 20, que era: “entregue a sua melhor performance e seu lugar estará garantido”. A lógica do resultado hoje é compartilhe o máximo que puder, colabore, cheque todos os pontos coletivamente, estejam juntos e aí haverá chances, porque não há garantia de sucesso. Vale lembrar que o mundo é digital, mas nosso cérebro é analógico. Estamos em processo de alfabetização em uma nova linguagem, mas somos terráqueos que precisam de conexões analógicas, pertencimento, elogio, orgulho de saber fazer, engajamento, propósito, contato com a alma, ou seja, tudo isso que está no filme. Isso inclui digerir a derrota de cada dia de maneira saudável, e, para isso, existe um antídoto: ser um herói antifrágil, que é ter autoconsciência sobre si próprio, o que te protege da extrema fragilidade. Não por acaso a disciplina mais frequentada em escolas de negócios, como a de Harvard, é sobre felicidade. Quanto mais autoconhecimento, mais o líder volta a se conectar com as suas forças. Isso no filme é evidente.
CI: De que forma?
Bela Fernandes: Na hora em que eles tropeçam e erram, eles começam a esquecer quais são os talentos e forças que trazem dentro deles. Ocorre um colapso mental. A sensação de fracasso gera muito cansaço psicológico. Os vingadores estão em total estado de burnout; mas um lembra ao outro de seus dons e talentos. Eles, então, viajam no tempo e isso é muito importante. O executivo tem que lembrar o que fez em 2014 para enfrentar 2019. “Qual a relevância que temos para a sociedade?” Isso é muito perguntado, e o filme retrata esse aspecto. Quando eles voltam sabendo quem são, lembram-se do que fizeram até aqui. Isso é uma constante na vida executiva. Olhar para o que nos falta é um modelo mental nosso, em vez de enxergar o que construímos até aqui.
CI: De que maneira o ritmo dinâmico das transformações do mundo está impactando os executivos?
Bela Fernandes: A transformação do mundo já impactou e criou um planeta novo, “TerraDois”, conforme denomina Jorge Forbes, psicanalista brasileiro. E quem acha que está na Terra está perdido, porque a TerraDois está exigindo da gente relações com pessoas, cuidado consigo, autoconhecimento, mindset totalmente mudado, visão de propósito. É o mundo pegando fogo, totalmente disruptivo.
CI: Nesse sentido, quais as diferenças com o mundo dos negócios do passado?
Bela Fernandes: Tem uma diferença clássica: no mundo do passado, a gente podia seguir a lógica do PDCA: plan, do, check and act (planejar, fazer, checar e agir) e a vida estava resolvida. Sobre esse mundo circulante, o Chris Argyris, de Harvard, que influenciou muito a academia dos negócios e também a medicina, diz que nos tornamos, no mundo contemporâneo, “incompetentes habilidosos”. A teoria dele é o “Aprendizado de duas voltas”. Ele diz que precisamos encontrar a causa do problema e não só tratar o sintoma, e o olhar de duas voltas se interessa mais pelo porquê, o que o filme “Vingadores” mostra. Eles tentam um PDCA e notam que por ali não daria, então eles vão tratar a causa. E perguntam: qual foi a emoção que me tirou do eixo? Esse trabalho precisa de autoconsciência sobre si, incluindo as perguntas: qual o impacto que produzo no outro e qual o tempo que temos para reverter o jogo? Há uma pegadinha muito séria sobre sermos regidos pelo tempo de um ano. Podemos ter um dia ou algumas horas para reverter o jogo. Mas sempre gosto de lembrar uma frase minha: o luto nunca é o fim da história, mas é necessário ser vivido.
CI: Quais as principais queixas dos empresários e executivos atualmente?
Bela Fernandes: São muitas, a principal é a dificuldade de comunicação. Eles se tornaram líderes de uma geração. Quem tem hoje 50 anos está liderando pessoas de 20 e poucos anos e pares da sua mesma idade. A queixa é a assertividade, porque eles não avaliam que a comunicação é um processo em 3D: para cima, para os lados – com seus pares – e para baixo – com seus liderados. E para cada um desses eixos é uma habilidade a ser desenvolvida. Voltando ao Chris Argyris, a falta de comunicação vem da perda que temos pelo aprendizado contínuo, enquanto a nova geração tem essa fome, sem ter vergonha de dizer o que não sabe.
Leia a íntegra desta entrevista na edição de junho de 2019 da revista Carta da Indústria.
Fonte: Firjan